22/04/2019 – 05:00 – Valor
Quem chega à periferia de qualquer região metropolitana do país ou em pequenas cidades do interior pode perceber. Essas localidades têm energia elétrica e telefonia de última geração? A resposta é quase sempre positiva. Existe rede de coleta e tratamento de esgoto? Muito provavelmente não. O saneamento básico, no Brasil, apresenta indicadores vergonhosos e tem se mostrado campeão do atraso que afeta a área de infraestrutura. Em 2017, foram gastos R$ 10,9 bilhões no setor, quase 8% menos do que o verificado no ano anterior. Trata-se do menor investimento em toda a década e cerca de metade do valor anual necessário para a universalização do serviço até 2033, conforme a meta estipulada no Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab).
A continuar em tal ritmo, segundo estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a cobertura plena ficaria para um longínquo ano de 2060. Enquanto isso, rios têm mau cheiro e a população é exposta a doenças medievais. A cada 100 litros de esgoto lançados no meio ambiente todos os dias, 48 não são sequer coletados. Aproximadamente 1,5 bilhão de metros cúbicos de esgoto coletado não recebe tratamento. É o equivalente a seis mil piscinas olímpicas por dia. Seis mil. Por dia.
Enquanto energia elétrica e telefonia possuem marcos regulatórios consolidados, atraindo capital nacional e estrangeiro, o saneamento convive com um modelo falido e escassez de recursos. Dos 5.570 municípios brasileiros, só 98 têm operação privada de água e esgoto. As empresas privadas, responsáveis por 6% do mercado, investem R$ 418 por habitante. A média nacional é de R$ 188.
Para modificar esse cenário, uma medida provisória (MP 844) foi publicada, em julho de 2018, com a premissa de maior abertura ao setor privado. Sua essência consistia em obrigar as prefeituras, titulares dos serviços, a abrir chamamento público para a implantação de novos sistemas de água ou esgoto. Com isso, as companhias públicas perdiam a preferência.
Até então, quando elas tinham interesse em concessões ou contratos específicos, exerciam espécie de reserva de mercado.
Os resultados provaram-se ruins e ensejaram a mudança.
Meses depois, em função dos conflitos que despertava, a MP 844 expirou sem ter sido votada. É certo que havia a campanha eleitoral a atrapalhar a tramitação de temas importantes no Congresso Nacional, mas questionamentos pertinentes foram levantados. Talvez o maior deles fosse a dúvida sobre se uma abertura geral do setor não levaria as empresas privadas a ficar só com os municípios mais rentáveis, deixando as cidades que dão prejuízo com estatais sem condições de investir?
No apagar das luzes do governo Michel Temer, em 27 de dezembro, outra medida provisória foi publicada (MP 868) com teor muito parecido. O novo texto manteve avanços da redação anterior. Atribui à Agência Nacional de Águas (ANA), por exemplo, competência para emitir normas de referência em um setor com uma salada regulatória – são 49 agências estaduais ou municipais. E institui a cobrança de tarifa de esgoto para as edificações onde a rede coletora finalmente chega – hoje é comum moradores evitarem conexão ao sistema recém-implantado e continuarem usando fossa, ou despejando esgoto a céu aberto, para não pagar mais uma tarifa. Agora, desde que o serviço seja efetivamente oferecido, eles terão a despesa conectando-se ou não.
A MP 868, porém, não solucionou o dilema. Na semana passada, o governo Jair Bolsonaro colocou sua digital no novo marco regulatório e apresentou ajustes à comissão que analisa o assunto. Pela proposta do Ministério de Desenvolvimento Regional, continuará havendo exigência de chamamento público, em que os grupos privados tendem a ganhar mercado das estatais. Mas, para dar escala ao negócio, estabelece-se a figura jurídica das “microrregiões”. Desenhadas pelos governos estaduais, com base em critérios como pertencimento à mesma bacia hidrográfica, vizinhança territorial ou até agrupamento entre municípios superavitários e deficitários, permitirão a formação de blocos mais atrativos para investidores privados. A mensagem é que pequenas cidades têm como se viabilizar.
A acolhida à proposta foi boa. Mas há outras reflexões a fazer. É preciso considerar, por exemplo, se os governadores não vão protelar a confecção das “microrregiões”. Ou se essa transferência de poderes não suscitaria ações questionando a constitucionalidade da futura lei, já que o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu aos municípios a titularidade do serviço. É necessário apressar a análise pois a MP 868 caduca em 3 de junho e ainda não tem sequer relatório da comissão.