É ilógico que o governo tenha de provar a necessidade de privatizar cada uma de suas empresas; o correto, segundo a Constituição, é o oposto
Elena Landau – Folha de São Paulo
6.abr.2018 às 2h00
O Programa Nacional de Desestatização (PND) foi criado em 1990. Até hoje, o procedimento para escolher as empresas a privatizar é o mesmo: com base em sugestão do Conselho Nacional de Desestatização (hoje Conselho do PPI), decretos presidenciais decidem caso a caso a inclusão de novas empresas. E o debate incita sempre a pergunta: mas precisa mesmo privatizar?
Muito foi feito ao longo desses quase 30 anos. Setores como petroquímica e siderurgia, empresas como Vale e Telebras, além de concessões de serviços de energia, óleo, gás e transportes passaram à iniciativa privada nas mais variadas formas, incluindo vendas de controle e liquidação, modalidades previstas na lei, entre outras.
Ainda assim, existem hoje 146 estatais federais no Brasil, 40 delas iniciativas recentes do governo do PT. A criação das estatais, na maioria, foi autorizada há décadas por leis hoje anacrônicas, anteriores à Constituição de 1988. São empresas cujas funções podem ser claramente assumidas pela iniciativa privada. Surgiram num modelo nacionalista e protecionista, que ao mesmo tempo conferiu incentivos pontuais a uma indústria privada nascente.
O modelo se esgotou há muito. Seus limites foram vistos em duas graves crises: a dos anos 80 e a mais recente, do lulopetismo. Em ambos os casos, regredimos uma década.
A mudança da atuação do Estado deve ser radical. Recente estudo da Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Sest) estima que, em seu conjunto, elas têm patrimônio pouco acima de R$ 500 bilhões. O valor de mercado das listadas em Bolsa chega perto disso. Recursos que não estão sendo investidos em saúde, educação, saneamento e segurança pública e na defesa nacional —tampouco na redução de endividamento, fundamental para assegurar a queda sustentável nos juros reais.
A forma do programa de privatização está errada. É hora de começar a cumprir o artigo 173 da Constituição, até hoje ignorado: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
A Carta impõe a inversão do ônus da prova. O governo, baseado no que as leis já permitem, deve, por decreto, incluir todas as empresas estatais no programa de privatização, de uma única vez. Em bem poucos casos, a medida vai depender de lei específica, como no da Eletrobras, o que foi feito há pouco por medida provisória; mas é exceção.
O debate público está invertido desde 1988. Não faz sentido que o governo seja obrigado a provar a necessidade de privatizar cada uma de suas empresas. O correto, segundo a Constituição, é o oposto.
E aqui não se podem aceitar argumentos subjetivos, como os de políticos com interesses pessoais na estatal, os de grupos privados que se beneficiam de seus negócios ou os de funcionários que preferem o guarda-chuva do governo a serem avaliados por gestores privados.
Empresas estatais têm de ser exceção: para mantê-las, há que se demonstrar qual imperativo de segurança nacional ou relevante interesse coletivo, bem delimitado em lei, que o justifique. Mas é preciso cuidado: por conta de nossa herança patrimonialista, muitas vezes se confunde imperativo de segurança nacional com a retórica vaga dos setores “estratégicos”.
A Constituição de 1988 tem sido criticada por estar fora de prumo no Brasil de hoje. Pode haver, sim, muita coisa a ser revista, mas há nela princípios relevantes que ninguém respeita. No artigo 173 está um deles, que é moderno e adequado ao país. É só segui-lo.