Já passou da hora de o país rever esse tipo de medida
Clauber Leite e Michel Roberto O. de Souza – Folha de São Paulo
18.mar.2019 às 8h00
Todos sabemos que o fornecimento de energia elétrica no Brasil é caríssimo e de péssima qualidade. Porém, o que muita gente não se deu conta é que mais de 40% do valor que se paga todos os meses não é pela energia consumida, mas, sim, encargos (16%) —nos quais se inserem os subsídios— e tributos (28%).
Só o fato de os subsídios virem mascarados na conta de luz como “encargos” já pode ser considerado um problema. Mas existem outros. Nessa cota de subvenções, a grande parte do dinheiro do consumidor vai para a CDE (Conta de Desenvolvimento Energético). Seu objetivo é custear políticas públicas do setor, como a universalização do acesso à energia, a concessão de descontos tarifários a setores econômicos estratégicos e o fomento à competitividade de fontes alternativas.
Três coisas são fundamentais para entender a CDE: seu valor total, quem de fato paga e quem é beneficiado.
Em 2007, destinavam-se R$ 2,9 bilhões para a conta, e, no ano passado, já eram R$ 20 bilhões. A questão é: quem pagou por esse aumento? A resposta tem relação direta com o aumento da conta de luz.
Até 2014, grande parte desse subsídio era custeado com recursos da União (R$ 11,8 bilhões de R$ 18 bilhões) e era destinada a fins mais restritos. A partir daí, a CDE passou a incluir novas categorias de beneficiados e o valor remetido a esse subsídio continuou a ser ampliado, mas agora com grande parte do pagamento sendo repassada aos consumidores por meio da fatura de energia elétrica.
Com relação a quem é beneficiado, há pouca transparência. Desde 2017, as concessionárias do serviço de distribuição de energia são obrigadas a prestar essa informação à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), o que foi cumprido por pouco mais de 50% das empresas. Mas só com isso o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), em pesquisa realizada no ano passado, já conseguiu verificar várias excentricidades.
Do total de R$ 14,9 bilhões, 38% custearam energia para o segmento de atividades rurais e de irrigação, 24% foram para Tarifa Social e 23% ficaram com fontes alternativas. Entre os favorecidos do primeiro item, encontramos pessoas físicas que chegaram a receber R$ 9 milhões, além de clínicas, motéis, igrejas, imobiliárias, empresas de envasamento de água, cursos preparatórios, comércio de produtos farmacêuticos, entre outros. Já o terceiro incluiu supermercados, shoppings e condomínios, que, individualmente, também obtiveram milhões em descontos.
Além dos três citados, o segmento água, esgoto e saneamento, que favorece empresas públicas e concessionárias do setor, ficou com 8% da conta. Ou seja, o cidadão pagou mais caro pela energia elétrica, que é um serviço essencial, para baratear o acesso a outros serviços igualmente essenciais. Faz algum sentido?
Recentemente, após ampla consulta pública realizada pelo Ministério de Minas e Energia sobre a redução estrutural das despesas da CDE, o governo federal editou o decreto 9.642/2018, que reduz progressivamente os benefícios concedidos por meio da conta. Embora tímido, o ato foi positivo.
Agora, segundo noticiado, o atual governo federal cede vergonhosamente à pressão da bancada ruralista para revogá-lo, contrariando por completo o interesse público, conforme comprovam os dados aqui citados.
Já passou da hora de o Brasil rever essa política de subsídios que não param de aumentar, não são transparentes e têm destino questionável. Por se tratar de uma política pública, o ideal seria que as subvenções saíssem direto do Tesouro Nacional. Isso traria mais transparência e ampliaria a compreensão do cidadão sobre seu consumo.
A conta de luz não pode mais ser uma armadilha para o consumidor, um recurso para o Estado adquirir receita fácil para beneficiar setores específicos sem cumprir sua obrigação de planejar a geração e distribuição de energia elétrica no país.
Clauber Leite
Mestre em energia pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor)
Michel Roberto O. de Souza
Doutor em direito pela USP (Universidade de São Paulo) e advogado do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor)