Por Igor de Souza, R. Barata e F. Gallacci – Valor Econômico
12/03/2019 – 05:00
Decisão recente do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 553, de relatoria da ministra Carmen Lúcia, promete gerar debates no setor de infraestrutura, assim como nos Estados e municípios brasileiros. A discussão, como abordado mais abaixo, está umbilicalmente ligada às garantias para projetos de infraestrutura e para a tomada de crédito junto a instituições financeiras (inclusive os bancos públicos, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil).
Em resumo, no acórdão publicado em meados de fevereiro deste ano, o STF entendeu inconstitucional dispositivo da Constituição Estadual do Rio de Janeiro que vinculava percentual de repasse do Fundo de Participação do Estado para um fundo específico, o qual, por sua vez, detinha obrigatoriedade de utilizar parte de seus recursos para fomentar projetos de microempresas e empresas de pequeno porte (art. 226, §1º, da Constituição Estadual do RJ). A discussão do STF girou em torno da (im)possibilidade da vinculação dos repasses federais via fundos de participação estaduais e municipais.
Como se sabe, entes federados não podem, em regra, vincular receitas com a arrecadação de impostos para órgão, fundo ou despesa (art. 167, IV da Constituição Federal). Trata-se do princípio da não-vinculação de impostos, que visa garantir que o administrador público tenha liberdade de alocar os recursos segundo as prioridades orçamentárias de cada ente federado.
Este princípio se complementa ao sistema de cooperação federativa de receitas, com distribuição do produto da arrecadação de tributos pela União para os entes subnacionais (art. 159, I da Constituição). Esse é o núcleo jurídico dos debates: os repasses dos Fundos de Participação aos Estados e Municípios (assim como os de ICMS realizados por Estados aos municípios) podem ser ofertados como garantia em projetos de PPPs ou financiamento bancários?
Formalmente a decisão do STF não invalida ou macula garantias prestadas por Estados ou municípios, fundadas, por exemplo, na vinculação ou na cessão fiduciária de seus fluxos de FPE ou FPM. Isso porque, embora a decisão em ADI tenha efeitos gerais, tais efeitos se restringem ao objeto de julgamento, ou seja, à vinculação de parcela do FPE para fundo específico, na forma realizada pela Constituição do Estado do Rio de Janeiro.
Contudo, a argumentação dos ministros preocupou muitos agentes do mercado e estudiosos da área, dado seu potencial impacto na estruturação e oferta de garantias em projetos de infraestrutura. A preocupação se justifica porque a argumentação do STF traçou um paralelo, em abstrato, entre a vinculação do repasse de recursos através de FPE e a vedação à vinculação da receita de impostos, acima mencionada, sinalizando que poderia, caso se deparasse com situação de vinculação de FPE ou FPM para garantia de contratos ou projetos, entender pela vedação à vinculação e anular o instrumento amplamente utilizado no país.
Esse novo entendimento vai na contramão daquilo que vinha sendo realizado nos projetos de infraestrutura e nos contratos de financiamento aos entes públicos, posto que em ambas as hipóteses era praxe a vinculação de tais fluxos de receita à garantia ou pagamento das obrigações contratuais. O entendimento, com o qual concordamos, indicava que o legislador não poderia instituir cobrança de impostos vinculados a uma destinação específica. Os repasses via FPE e FPM, por não serem frutos de uma destinação específica estabelecida em lei instituidora de impostos, seriam, então, meras receitas financeiras, decorrentes de norma orçamentária, não importando se originalmente os montantes fossem constituídos de parcela de arrecadação de impostos pela União.
A leitura construída acima baseava-se em precedente do próprio STF, na análise do Recurso Extraordinário nº 184.116, julgado em 2000, sob relatoria do ministro Marco Aurélio. À época, a Corte decidiu inexistir ofensa à Constituição Federal quando da vinculação de parcela da participação do município no ICMS para liquidação de débito municipal. Neste julgado ficou claro que a vedação de vinculação somente se aplicaria aos chamados tributos próprios, de arrecadação do próprio ente federado. Essa interpretação foi, inclusive, adotada pela Advocacia-Geral da União, em Parecer Vinculante nº GMF07, de março de 2018, referente ao Parecer nº 02/2018/Gab/CGU/AGU, bem como pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, na análise do Processo nº 809502, Consulta, de relatoria do Conselheiro Antônio Carlos Andrada.
No âmbito das PPPs, diversos contratos já foram assinados com garantia proveniente da vinculação de receitas do FPM ou FPE. O novo entendimento do STF pode constituir mais um entrave no desenvolvimento de projetos, ante à provável insegurança jurídica acerca do tema, somada à carência de garantias robustas a serem prestadas pela Administração Pública em projetos de PPP. Esperava-se do STF maior cuidado com o tema, especialmente quando falamos de assunto complexo, inclusive já validado pela própria Corte e AGU.
Da análise do acórdão constata-se que os precedentes citados pelos ministros não tratam de casos semelhantes, mas se referem a situações de vinculação de impostos estabelecidos em leis que os instituíram. Ou seja, nos parece que o STF se equivocou no julgamento, utilizando-se de precedentes não aplicáveis à matéria que estava em discussão. A relevância do tema foi aparentemente subestimada pelos ministros, na medida em que poucos abordam a discussão da natureza do repasse e, ainda assim, de forma superficial, quando o fazem. Os impactos para os projetos de infraestrutura e tomada de crédito pelos entes federados tampouco aparecem na fundamentação apresentada pelo acórdão.
A situação torna-se cinzenta e já dá sinais de impacto no desenvolvimento de estruturas de garantia prestadas pelos entes subnacionais em contratos de PPPs e de financiamento. Eventualmente, a apresentação de Embargos de Declaração serviria a esclarecer o posicionamento do Supremo sobre a extensão do assunto às garantias, seja positiva ou negativamente. De qualquer forma, fica evidente, caso ainda restasse alguma dúvida, o que é insegurança jurídica no Brasil, como se materializa e seus impactos. Se o desenvolvimento da infraestrutura for mesmo prioridade, faz-se essencial que situações como essa sejam corrigidas e que maior previsibilidade seja oferecida aos investidores.
Igor Nascimento de Souza, Rodrigo Sarmento Barata e Fernando Bernardi Gallacci são respectivamente sócio e associados do Madrona Advogados, especialistas Tributário e projetos de PPPs.